07 Apr 2020 Reportagem Climate Action

Como aproveitar os ingredientes na cozinha e reduzir o desperdício

São oito horas da noite e o chef italiano Massimo Bottura está em sua cozinha. Com óculos de armação grossa, barba grisalha bem aparada e um capuz preto, suas mãos são um borrão em movimento enquanto corta alguns legumes e os coloca em potes e panelas dispostos ao seu redor. Nada novo até aqui, você deve estar pensando. Mas essa está longe de ser sua rotina normal. Como milhões de outros italianos, Massimo está em quarentena enquanto o país luta contra o surto de COVID-19.

Os italianos demonstraram coragem, paciência e criatividade para superar esse período difícil. Massimo – chef do premiado restaurante Osteria Francescana, em Modena, com três estrelas Michelin, e cofundador, com sua esposa Lara Gilmore, da organização Comida para a Alma (Food for Soul, em inglês), que combate o desperdício alimentar através da inclusão social – não é diferente.

Ele está inspirando e entretendo os espectadores, colocando sua energia reprimida na Quarentena na Cozinha (Kitchen Quarantine, em inglês), um programa de culinária on-line produzido no Instagram pela própria família, que também tenta ensinar como fazer ótimas refeições com o que temos em casa. Isso reduz o número de vezes que as pessoas precisam sair de casa para obter suprimentos e o risco de espalhar e pegar o vírus – além de nos ensinar alguns truques para reduzir o desperdício alimentar.

“A Quarentena na Cozinha é uma maneira divertida de interagir com famílias de todo o mundo, cozinharmos juntos, compartilharmos ideias, desfrutarmos da companhia uns dos outros e ensinarmos às pessoas as boas práticas culinárias, como limpar a geladeira para limitar o desperdício, usar sobras para preparar algo novo e comer alimentos diferentes”, diz Bottura.

Pode não parecer óbvio, mas o desperdício alimentar está ligado às doenças zoonóticas –doenças transmitidas de animais para seres humanos – como o COVID-19.

A agricultura é a principal responsável pela expansão humana a ecossistemas naturais, o que pode ser problemático, como explicou a diretora executiva do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), Inger Andersen, em uma entrevista recente ao The Guardian.

"A perda contínua dos espaços naturais nos aproximou demasiadamente de animais e plantas que abrigam doenças que podem ser transmitidas para os seres humanos", disse ela. "À medida que nos aproximamos dos habitats naturais, o contato entre seres humanos e hospedeiros animais aumenta – gerando maior probabilidade de interação entre vetores e humanos".

As pessoas desperdiçam cerca de um terço de todos os alimentos que são produzidos ao ano, o equivalente a 1,3 bilhões de toneladas. Essa perda alimentar também significa perda de recursos, como água e terra. Acabar com o desperdício nos ajudará a economizá-los e reduzir a mudança climática – grandes ameaças à saúde humana.

Reduzir o desperdício é uma prioridade da Comida para a Alma, com seus projetos de refettorio (refeitório) em todo o mundo recuperando mais de 200 toneladas de sobras alimentares em aterros sanitários. Os ingredientes são transformados em refeições nutritivas e servidas em um ambiente de convívio para aqueles que sofrem extrema vulnerabilidade social, incluindo os sem-teto e os refugiados.

Mas Massimo quer inspirar ações adicionais sobre a perda de alimentos em toda a sociedade, mostrando que os produtos descartados – como vegetais machucados ou alimentos fora de datas arbitrárias de validade – podem se tornar algo delicioso e nutritivo.

"Se pudermos usar todos os ingredientes, reduziremos a quantidade de resíduos produzidos e faremos compras mais eficientes", disse ele. “Compras compulsivas são o ponto de partida para a superprodução e exploração dos recursos agrícolas. Questões como perda de biodiversidade, mudança climática e vulnerabilidade social estão conectadas. Um hábito ruim leva a outro, o que cria um círculo vicioso, e a natureza sofre com o resultado.

“Nós podemos solucionar esse problema ao olhar os ingredientes com outros olhos. O desafio é pensar, por exemplo, em uma maçã ou uma banana mesmo com suas imperfeições: elas ainda podem ser saborosas e nutritivas se usadas adequadamente. Meu conselho é comprar alimentos sazonalmente e encontrar maneiras criativas de usar o que você já tem, ao invés de sair para comprar mais.

“Uma das minhas receitas favoritas feitas com restos de alimentos é a passatelli, que qualquer pessoa pode fazer em casa. Trata-se de uma massa tradicional de Modena feita com farinha de rosca, que minha avó Ancella costumava fazer para minha família. Eu aprendi com ela e agora amo fazer aqui em casa. Essa também foi uma das primeiras receitas da Quarentena na Cozinha”.

Claro que o problema não vai ser completamente resolvido por simplesmente redirecionarmos o desperdício alimentar. É importante que os consumidores olhem para seus próprios perfis de consumo e comprem apenas o que precisam. Os supermercados também precisam observar as práticas e padrões de datação de alimentos para reduzir a quantidade jogada fora. Isso deve ser feito em toda a cadeia alimentícia, até chegarmos à fazenda.

O desperdício é apenas uma parte do problema. O consumo cada vez maior de alimentos que exigem utilização intensiva de recursos, como a carne vermelha e os ultra processados, também está impulsionando a conversão de áreas naturais para a agricultura – destruindo ecossistemas, reduzindo a biodiversidade e contribuindo para as mudanças climáticas.

Os parceiros dos refettorio estão sempre melhorando sua programação para elevar a consciência da comunidade e melhorar o sistema alimentar local. A organização Comida para a Alma está pesquisando o papel transformador da natureza para melhorar a resiliência dos mais vulneráveis, com conceitos de design arquitetônicos, iniciativas de jardinagem urbana e educação culinária. Essas atividades evidenciam o valor da comida, o que é necessário para produzi-las e as aplicações práticas para mantermos espaços verdes mesmo em uma era de rápida urbanização.

No cerne dos desafios que a humanidade enfrenta – sejam pandemias emergentes, perda de biodiversidade ou mudanças climáticas – está o nosso relacionamento disfuncional com a natureza. À medida que superamos a pandemia do COVID-19 e chegamos a um mundo bastante transformado, precisamos desenvolver um relacionamento muito mais saudável com o planeta.

"Se não cuidarmos da natureza, não poderemos cuidar de nós mesmos", disse Andersen. "E, à medida que a população mundial avança para 10 bilhões de pessoas, precisamos entrar no futuro com ela como nossa principal aliada”.

 

Para saber mais sobre Massimo Bottura e acompanhar a Quarentena na Cozinha, siga-o no Instagram: https://www.instagram.com/massimobottura/

 

O Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) está fazendo sua parte para reformar os sistemas alimentares e trazer uma série de benefícios ambientais. O PNUMA trabalha com o Programa de Sistemas Alimentares Sustentáveis ​​da One Planet Network em três áreas principais: governança, desperdício de alimentos e dietas sustentáveis.

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